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Rotulação da Loucura

A psiquiatria é baseada no conceito de normalidade, ou seja, naquilo que está dentro da norma, dos padrões. Logo, ao se comparar o comportamento das pessoas, diz-se que aquelas que não agem como a maioria são diferentes das outras, ainda que anatômica e funcionalmente elas estejam dentro da normalidade. Isso acaba gerando uma segregação dos pacientes psiquiátricos, porque, mesmo que a medicina não tenha uma explicação orgânica para a doença mental, o comportamento destas pessoas não se adéqua aos padrões habituais da sociedade.

Por outro lado, psiquiatria também é moralização. Desta forma, mesmo não existindo alterações orgânicas, existe moral. Olhando por este aspecto, se a medicina não incluir os portadores de sofrimento mental em algum código da CID ou do DSM, a sociedade pode considerá-los como imorais.

Por exemplo, se uma pessoa sai pelada à rua pra jogar o lixo fora, a sociedade vai dizer que ela é uma sem-vergonha, julgando o comportamento anormal como imoralidade, sem sequer saber o que motivou a atitude. Para essa pessoa, ela não estaria vestida? Ou ainda, será que ela não acha normal esse comportamento? Temos que levar em consideração que não existe um saber melhor que o outro. Existem saberes diferentes e, para o portador de algum transtorno mental, no saber dele, seu comportamento, muitas vezes, não é anormal.

Podemos ver que não é tão simples definir e muito menos compreender a loucura, processo que vem sendo feito desde os primórdios da civilização, época em que os “loucos” já sofriam preconceitos. Desde então, a doença mental vem sofrendo influências de opiniões religiosas, mágicas, psicológicas, racionais, médicas, dentre outras, todas tentando encontrar uma definição para aquilo que se chamava loucura. No século XVIII, Pinel trouxe um novo entendimento sobre a loucura, que passou a ser considerada uma doença e, conseqüentemente, objeto de estudo da medicina (SPADINI  e SOUZA, 2006).

Já que loucura passou a ser doença, precisava-se então de um hospital para tratá-la. Este surgiu no século XVII para o internamento de loucos e outros excluídos, como os mendigos da época, embora ainda sem caráter médico, mas que já contribuía como forma de isolamento e segregação social. Nesta fase, a loucura passava a ser reconhecida pela sociedade como incapacidade para o trabalho e impossibilidade de se integrar a um grupo (FOUCAULT, 1997). O paciente era visto de forma objetiva, de forma a se valorizar seu conjunto de sintomas, com pouca ou nenhuma consideração em relação à existência do sujeito. Não se considerava a importância da participação do paciente, da família, e muito menos da sociedade, no processo de mudança dos institucionalizados.

A forma de olhar muda a perspectiva das coisas. Logo, parar de olhar os “loucos” como incapazes, coitados e perigosos e passar a enxergá-los como e também fazê-los acreditar que são agentes de mudanças (mudanças sociais, políticas, éticas e culturais) já seria um grande passo para derrubar vários estigmas e ressocializar estas pessoas. Por isso a importância da Reforma Psiquiátrica, que no Brasil teve início na década de 70, e que veio justamente propor uma mudança na forma de pensar e agir com relação à saúde e à doença mental.

A Reforma Psiquiátrica propôs vários reajustes, sendo que um muito importante foi na maneira de se referir ao doente mental, que passou a ser chamado de paciente em sofrimento mental ou psíquico, de forma que passássemos a olhar para o sujeito que sofre, colocando a doença entre parênteses e não mais o sujeito. Lembrando, de forma bem resumida, que a Reforma Psiquiátrica além desse reajuste, propôs mudanças em quatro dimensões: teórico-conceitual, teórico-assistencial, jurídico-política e sociocultural, mas todas com o objetivo de derrubar estigmas relacionados aos pacientes em sofrimento psíquico e promover a reinserção deles no meio social, tendo o usuário, seus familiares e a sociedade papel fundamental nesse processo (AMARANTE, 2007).

A Reforma veio então para propor um novo olhar sobre a loucura, porque as  pessoas vêem o que estão acostumadas a ver, ou ainda, o que aprenderam a ver. Portanto, é preciso ver diferente para mudar. Por exemplo, é sabido que os portadores de Síndrome de Down vivem pouco, mas se pensarmos  simplesmente que Deus quis assim e que isso é normal, nunca serão feitas pesquisas e, consequentemente, descobertas que os levarão a viver mais. Assim é com os portadores de sofrimento psíquico: enquanto a sociedade continuar olhando pra eles como sinônimos de perigo e achando que o melhor tratamento é isolá-los, os estigmas e a exclusão social, para com essas pessoas, vão continuar existindo.

Spadini e Souza (2006) mostraram que familiares de pacientes com transtorno mental entendem a doença mental como um defeito da pessoa, como uma desestruturação da personalidade, e é esta falta de entendimento que os leva a buscar uma causa orgânica para o problema, alguns fazendo menção a fatores hereditários e culturais. Mostraram também que a falta de jeito da família em lidar com estes pacientes culmina, muitas vezes, em agressões físicas e verbais, e esses desentendimentos favorecem o desequilíbrio do doente. A conclusão a que chegaram foi que a família é o sustentáculo, é a base para uma boa estrutura emocional para o paciente, tanto para evitar crises, quanto para sua manutenção e recuperação.Isto explica a importância que a Reforma Psiquiátrica atribui à inserção da família no tratamento dos doentes mentais, de forma que ela também precisa de ajuda para entender e saber lidar com esses familiares, passando a olhar para eles de forma diferente.

Portanto, parece que o jeito de enxergarmos as coisas se relaciona com o local em que vivemos, com as coisas que fazemos e com o sistema com o qual  interagimos, fato que fica expresso no trecho:

A alienação do sujeito em relação ao seu destino é um fato social amplo (ainda que não se possa reduzir uma forma de alienação à outra), assim como o processo de fragmentação do trabalho (‘linha de montagem’) é absolutamente dominante no contexto social em relação a outras formas coexistentes de organização de produção (COSTA ROSA, 2000)

Ou seja, se uma pessoa cresce num sistema em que predomina uma visão preconceituosa sobre a loucura, provavelmente, ela também terá a mesma visão. Isso vem somente reforçar a necessidade de mais trabalhos de esclarecimentos e divulgação sobre a doença mental para a população, a fim de tentar diminuir os rótulos dados aos “loucos” e que ainda são muito presentes na sociedade.