L’anima Dannata: A Ira no Sujeito Pós-Moderno


 

E o sujeito confuso, atordoado, recorre ao intelecto para compreender a razão de tanto ódio e explosão desmedida ao ser acometido por pensamentos banais que, longe de estarem à altura de gatilhos justificadores de cólera, nele, são como faísca em paiol. Animais, supostamente menos evoluídos, têm explosões raivosas quando necessidades básicas são ameaçadas: fome, sede, reprodução, território, perpetuação da espécie e a própria vida… Mas, o sujeito-homem não. Desenvolveu o cérebro há milhões de anos, passou a vagar pela Terra, fazendo escolhas e protelando gratificações instintivas para que mais tarde pudesse construir o que chama de civilização. Sem que tivesse refreado impulsos mais odiosos (e desejosos), seria impossível sua sobrevivência, pois seguramente iria imperar a vontade do mais poderoso, com isso, ou se destruiriam todos, ou seriam esmagados por espécies mais fortes. A cria humana é sem dúvida a mais dependente e frágil de todas. Enquanto tartarugas ou jacarés logo após nascerem se lançam sozinhos ao mundo, ela depende por longos anos de cuidados intensivos e formadores do penoso processo de humanização. Vale dizer com isso que todos nascem bichos e aos poucos vão incorporando a humanidade em sua constituição.

O sujeito sabe no seu íntimo que a condição básica para a civilização continuar a existir é o desejo coletivo permanecer preponderante ao individual. Mas, sabe também que o preço cobrado por isso é alto, isto é, exige que impulsos vindos do interior da mente, desejosos por realização, sejam adiados, refreados e modificados (FREUD,1980). A humanidade paga caro por ainda habitar o planeta sob a bandeira da dominância: o custo de que o indivíduo sempre se submeta ao grupo. Assim, ao adiar a gratificação, protelar a realização do desejo e derivar impulsos hostis para finalidades mais nobres, criou-se não só a possibilidade de viver em comunidade com maior justiça e divisão, mas também os inúmeros problemas decorrentes. Por um lado, se ao invés de matar quando se bem deseja, esganar, trucidar ou ferir, se cria, por exemplo, uma ONG em prol dos desvalidos ou leis de proteção à infância; por outro lado, ao invés de saciar-se e chafurdar-se na lascívia e volúpia da promiscuidade, pedofilia, estupro ou incesto, em roubos, assassinatos etc., surgem os sintomas e as desordens mentais que são tentativas de proteger o sujeito a qualquer custo de inclinações dessas naturezas (FREUD,1980). A civilização, como a conhecemos hoje, só se sustenta através de leis, normas, proibições e tabus, possibilitando limites e convivência, mas também criando fantasias, projeções, medos complexos, divindades poderosas, defesas contra forças ameaçadoras que vêm de fora e, principalmente, contra aquelas que vêm de dentro do próprio homem…

Voltando ao sujeito em questão, civilizado, pós-moderno, capitalista, agora, neste exato momento em que rumina sobre sua condição existencial, em algum lugar do planeta, sente o coração subitamente queimar tal fornalha, enquanto seus lábios se cerram.

 

 

A respiração é ofegante e ele hesita tentando controlar o impulso odioso para não lançar o veículo contra o algoz que lhe ultrapassou a frente de súbito, logo após o semáforo abrir. Decide se emparelhar com seu novo desafeto e na menor olhada de repreensão, sarcasmo, escárnio ou revide, explodirá com certeza toda a ira, agora revestida de ferro e lata contra o infeliz que cruzou seu caminho. O peito, no entanto, se congela quando vê ao volante daquele veículo uma cabecinha branca, sulcos profundos na face, óculos grossos, lutando com expressão assustada pra compreender o caos da civilização e o trânsito frenético que há mais de setenta anos não existiam em sua vida. Uma garotinha no banco de trás sorri e abraça o avô ao volante, acenando para o sujeito sem saber da iminência de uma possível desgraça. Naquele instante, seus sentimentos se repolarizam e logo dão lugar ao buraco da culpa, do remorso, da estupidez e do desejo de se redimir. Na hora, sentindo-se pequeno recorre novamente ao intelecto, lembrando-se que o ódio só surge quando a razão sucumbe à emoção (Sêneca, 2001), que o amor deverá ser mais forte para que possa haver reparação (KLEIN e RIVIERA,1975). E tentando, por fim, justificar sua irracionalidade evoca Schopenhauer (2001), que afirma ser estúpido e vulgar alimentar sentimentos assim…

O momento de desatino vai então amenizando, o sujeito se retrai ao ergástulo solitário de sua alma e se dá conta que vive num mundo intolerante, desigual, onde poucos têm muito e muitos têm quase nada, fazendo acirrar o ódio fundamentalista e religioso entre os povos. Lembra-se que vive repleto de tecnologia e aparatos que trazem conforto, bem-estar, luxo e status, mas, como disse Zygmunt Bauman (2008), em nenhuma pesquisa se comprovou que ganhar mais, ser rico, ter mais coisas, traga felicidade. Queria naquele momento o sujeito abarcar o conceito de felicidade, congelá-lo e jamais permitir que saísse de dentro dele. Queria aprisionar a felicidade, ah, a felicidade! O que é essa palavra tão perseguida e tão pouco contemplada por homens e mulheres?  Já recorreu antes a momentos de ócio, contemplação e à tentativa de um dolce far niente pra ver se a felicidade estava lá, mas fracassou. Não se desligou do celular, do laptop, da necessidade de informação e preenchimento do vazio. Tempo pra ele vale dinheiro, como se diz no jargão popular. Que tristeza, este sujeito detesta sua própria companhia.

Mesmo assim, curioso, naquele momento em que estava em seu carro, sem saber como, nem por que, controlou de fato os impulsos de ira e acabou se sentindo bem com isso, deixando o ancião, que lutava por sentido num mundo que o exclui sem piedade, ir embora com a pequenina que nada sabia sobre a vida. Triunfante, descobre vitória efêmera da cultura sobre o instinto, do amor sobre a ira, da conciliação sobre a discórdia, do coletivo sobre o individual. Jura, diante do espelho retrovisor, que doravante será cristão verdadeiro e que seu amor pelo próximo será como amar a si mesmo… Mas, tudo é fugaz nele, afinal, é um sujeito deveras insaciável. Ao proferir as palavras de amor cristão, se lembra da improbabilidade das mesmas nos escritos tristonhos de Freud (1980)  no final da vida quando este alega ser um preceito narcísico e muito pouco razoável para ser exercido. Isso é demais pra ele, não dá…

Mas, seja como for, esse sujeito é pós-moderno, narcisista, competitivo, capitalista e racionalizador. Sucumbirá, a qualquer instante, na impaciência, tédio, falta de sentido e viverá o tempo todo à espera de um acontecimento grandioso e de um lugar que não seja os não-lugares de seu cotidiano enfadonho. Logo, fica entediado com seu trabalho, sua parceira, suas amantes, amigos, com a vista da janela de seu quarto… Passa a não suportar a mobília e os quadros que imitam arte pendurados na parede, comprados em shoppings da periferia. Não mais tolera seus pensamentos, nem ele mesmo. Dá-se conta da finitude da vida, das teorias tacanhas que tentam explicá-la e dos pastores tele-evangélicos multimilionários, mercadores de almas que engordam contas bancárias e roçam volumosas panças suadas nas coxas de generosas meninas que os acompanham em orgias secretas, tudo em nome do Senhor: Aleluia! A ira cresce e o aprisiona em si mesmo novamente. Adolf Hitler, Torquemada e Genghis Khan, o que teriam em comum com Madre Tereza de Calcutá e Mahatma Gandhi? Segundo ele, em que pese a heresia da conclusão, apenas a mudança de direção no vetor do ódio, afinal crê de verdade que amar profundamente é odiar com extrema conveniência.  Não tem noção, coitado, que se tornou novamente um depositário de ódio latente. Ódio pelo que não sabe, pelo que deseja e não sabe que deseja, por frustrações consecutivas…

 

 

Este sujeito sabe muito bem que não teve ‘maternagem da boa’ no início da vida. Esta sim iria aplacar seus temores de bebê e criaria no cérebro conexões sinápticas profundas de paz, tranquilidade e superação. Se tivesse sido lambido e embalado, agora adulto, essas sinapses disparariam gatilhos de uma memória emocional reconfortante diante de perigos e angústias. Só lhe restou então chorar quando lembrou Paul Mccartney descrevendo a exata passagem do funcionamento mnêmico emocional na música Let it Be, evocando a doce voz de sua mãe, falecida há mais de dez anos, mas que estava ali gravada em suas entranhas, e no momento necessário o reconfortaria: ”When i find myself in times of trouble, mother Mary comes to me, speaking words of wisdon, let ib be, le ot be..” – algo como: “Quando me encontro em tempos difíceis, mãe Maria, vem até mim falando palavras de sabedoria: deixe estar, deixe estar…”  Pobre sujeito, sente não ter tido estes registros de acolhimento fixados no inconsciente, pois ele é, definitivamente, fruto da sociedade pós-industrial onde tudo é mercadoria barata e as famílias tradicionais se esfacelaram junto com os papéis parentais esvaziados. No lugar dos pais surge agora uma nova classe de especialistas que ‘ensinam’ como criar filhos (LASCH,1979). A maternagem passa a ser um conceito cada vez mais poético e passado, não aplicável às mulheres contemporâneas cuja maternidade se torna um fardo ameaçador à independência penosamente conquistada. Assim como ele, muitos se tornaram esquizoides, esquisitos com pouco investimento libidinal no corpo e na mente. Ele é um sujeito que cresceu aprendendo a ser individualista e ego centrado para sobreviver. Seus investimentos amorosos são assim também, cada vez mais pautados na lógica mercadológica do uso e descarte. Vive paixões fulminantes, não amores construídos e edificados na tolerância e superação. Quanto mais virtuais, menos chatos, melhor (BAUMAN, 2008).

E de novo, após refletir com dureza, o alívio e aquela pseudo-paz se esvaem por completo, está prestes a se transformar numa bomba ambulante. Bastará um sorriso, uma palavra, uma fechada no trânsito, uma contrariedade no trabalho para sentir ódio, ira, cólera. Os seus dias já não têm grandes emoções, a rotina é surda e o tempo feito de pontos não lineares, sem passado e futuro, só presente. Não há poesia ao lembrar-se da infância, dos amores pretéritos, dos amigos e suas descobertas fantásticas… Concebe o tempo como se fossem pontos fragmentados (um tempo pontilista, segundo Bauman). Nele, cada momento é separado sem conexão histórica com o sujeito. Vive-o intensamente, pois não tem mais que a duração daquele único instante. A junção destes pontos é nada menos que a sua própria vida: o todo é só uma somatória das partes.  Sendo assim, precisa de emoções frenéticas que abrilhantem o aqui e agora, é só o que importa. Frequenta bares com regularidade, bebe mais do que devia e compra compulsivamente, pois deseja muito, ainda que nunca saiba o que é e jamais se satisfaça com nada. Abastece sempre um poço desejante sem fim com aparelhos eletrônicos da moda, até que novos modelos desses mesmos aparelhos lhe evoquem a obrigação de troca e dispensa dos anteriores ao lixo, pois só assim crê encontrar felicidade e aceitação social, esta última, tão imprescindível quanto o ar que respira. Aparelhos pra ele são divindades em si. Não importa a que se prestam ou o quanto vão lhe servir. O importante é que os tenha e sejam  modelos novos com durabilidade, claro, já pré-datada. Ali está a felicidade tão veiculada pela sociedade espetacular. Se nos anos quarenta do século vinte as propagandas vendiam a imagem de um produto confiável, durável e muito útil, hoje, ela é apenas ligada à imagem de uma família ou alguém feliz, realizado e saudável. Basta ter o produto e pronto, é felicidade na certa! Isso é o que nos ensina o simulacro ditador da mídia, hábil em manipular o desejo insaciável dos seres humanos com mensagens fantasiosas e sem sentido. Afinal, quem de sã consciência vê qualquer relação em comer margarina de tal marca no café da manhã como condição para conquistar a moça bonita e ser feliz? A sociedade consumista nos promete a felicidade como nunca antes foi prometida por cultura alguma. E esta felicidade só pode existir no consumismo (BAUMAN, 2008).

O sujeito então, para evitar novas erupções coléricas, tentará imaginar maneiras de fugir da inquietude que jamais sacia. Assume novos empregos, residências, lugares, promiscuidade, álcool, viagens, drogas, terapia, carros de luxo, parceiros ou parceiras, doutrinas e teorias… Quando junta tudo por algum tempo, parece funcionar, e ao acontecer isso sai às ruas, efusivo, agitado, sorrindo (mais ansioso que feliz). Raiva agora só se temer que alguém roube dele essa sensação tão prazerosa. Sujeito desconfiado, autorreferente. Os poucos amigos se preocupam e juram que ele é bipolar ou possua qualquer outro diagnóstico tão comodamente criado às pencas para denominar a angústia do homem contemporâneo. Se o sujeito, aliás, desejar, encontrará tantos quanto queira. Basta ir a algum mentecapto representante da nova ciência da mente que se prostituiu e trocou os predicativos da subjetividade pelos predicativos da biologia (LIMA, 2005). Terá diagnósticos e drogas de qualquer natureza para seu bel-prazer e para o deleite de grupos  farmacêuticos multinacionais.

Numa tentativa final de compreender seu furor, crê que tudo se explique por viver numa época em que as utopias terrestres caíram por terra e não há mais qualquer discurso de contestação que aplaque o desamparo, sendo o consumismo extremo, o fundamentalismo e outras posturas radicais, os novos continentes para essa angústia (KEPEL, 1996). Mas, acaba desistindo de pensar assim, pois sabe que ao longo dos tempos a ira, o ódio, sempre estiveram presentes, ainda que com outras roupagens, coloridos e manifestações. Ele se retrai e vê sua insignificante condição humana que ao tomar consciência da finitude, teve um buraco negro aberto na alma que jamais se fechou. Dá-se conta de que vive numa sociedade de aparências espetaculares onde imagens midiáticas são a própria essência da vida (DEBORD, 2006)…

 

Bem, mas chega o dia então que este sujeito acorda no seu novo quarto em meio a uma nova família, nova amante, novo cenário, nova mobília e  novos quadros na parede. Vira-se de lado, puxa o pigarro viscoso da garganta, acumulado após tantos anos de tabaco e, sem ter onde cuspir, engole tudo. Leva a mão ao lado, no criado-mudo, toma um último gole de vodca e desliga a TV que repetia o menu do DVD pornô durante toda a noite enquanto dormia num mesclado de vodca com diazepam. Este DVD é o protótipo da compulsão à repetição que é sua vida esvaziada de sentido. Não tarda e logo tem o mesmo sentimento de fastio em relação à luz do dia que se infiltra pela janela do quarto. Tomado por angústia e raiva crescentes daquela condição se repetir, sente que é hora de mudar com a máxima urgência, pois de certo deve haver algo, em algum lugar, que o faça realmente feliz…

 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. A vida para o Consumo. Rio de janeiro: Zahar, 2008.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Projeto Periferia, 2003. Disponível em www.geocites.com/projetoperiferia). Acessado em 02/05/2013.

FREUD, Sigmund. O Mal Estar na Civilização (1930). Rio de janeiro: Imago,1980. (edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, v.21).

KEPEL, Gilles. A Revanche de Deus. São Paulo: Siciliano, 1996.

KLEIN, Melaine. & RIVERA, Joan. Amor, ódio e reparação. Rio de Janeiro: Imago,1975.

LASH Christopher. A Cultura do Narcisismo: A vida americana numa Era de
Esperanças em Declínio. Rio de janeiro: Imago, 1979.

LIMA, Rossano Cabral. Somos Todos Desatentos? O TDAH e a Construção das Bioidentidades. Rio de janeiro: Relume Dumará, 2005.

SÊNECA. Medeia. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos,
2011.Disponível em https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/bitstream/123456789/69/1/medeia.pdf. Acessado em 03/05/2013

SHOPENHAEUR, Arthur. A Arte de Ser Feliz. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Médico Psiquiatra com pós graduação pela Universidade Complutense de Madrid-Espanha e Servizio di Saluti Mental de Trieste-Itália; especialista em psiquiatria pela AMB e ABP. Mestre em Ciências da Saúde pela UNB.