Existe vida no cárcere?

O Sistema Prisional Brasileiro, que visa a ressocialização correcional dos indivíduos presos/apenados, como um todo, é falho em diversos aspectos, e as condições de vida dentro do mesmo costumam ser precárias.

Na prática, essa ressocialização não existe como deveria, e o regime de reclusão tem sido empregado para punir estes sujeitos, que vivem uma realidade de privação e violação dos direitos. Hoje, o que encontramos são prisões superlotadas, degradantes para mulheres e homens, com condições insalubres. No caso das mulheres, se olharmos o nosso percurso histórico, essa violência muitas vezes é velada e naturalizada pela própria sociedade.

Precisamos (re)pensar como estamos punindo.

Infelizmente, percebe-se que os apenados são abandonados e destituídos de direitos, em todos os sentidos da palavra. Há demora no julgamento dos processos, na concessão de benefícios e na progressão de regime e também, por outro lado, existe uma carência de manutenção do sistema. Enquanto isso, eles permanecem em situação de cárcere, alheios a tudo e a todos, a mercê de todo tipo de mazelas, dentro de um espaço que tem sido palco para cenas de extrema violência, privação de liberdade, rebeliões e aumento da criminalidade, como é constantemente mostrado pelas mídias.

Em hipótese poderíamos pensar que à egressa desassistida/abandonada de hoje, continuará sendo a “criminosa” reincidente de amanhã. O que está errado?

Essas situações que já proporcionavam impacto em nossas vidas por discursos de ódio e medo criaram outros significados ao entrarmos pelas grades. Durante a realização deste projeto de intervenção, experienciamos uma realidade aquém do esperado: de tristeza, dor e isolamento. O resultado desse contato, foi uma quebra de paradigmas, e a possibilidade de um enfoque diferente daquele contaminado pelo diálogo de nossa sociedade, que se isenta de seu papel de (co)responsabilidade por esse regime, subjugando essa parte de indivíduos que permanece calada, destituídos de sua cidadania, em condições precárias – para não dizer desumanas – sobre o pretexto de pagarem sua dívida com uma sociedade que ao longo de sua história de vida, só lhes cobra, sem nada oferecer em troca. Uma realidade que não apresenta sinais de que irá mudar tão cedo.

O relato que segue traz considerações de uma intervenção realizada por um grupo de estagiárias do curso de Psicologia numa unidade prisional feminina do Tocantins, um trabalho que se justificou pela necessidade de tentar minorar os agravos subjetivos da reclusão carcerária, trabalhando questões como relacionamento interpessoal, confiança e autoestima das encarceradas.

Para trabalhar com este grupo, usamos como metodologias: a roda de conversa e a aplicação de dinâmicas de grupo, por considerar que tais métodos elucidam no setting grupal os elementos necessários para análise da dinâmica do grupo (ZIMERMAN; OSÓRIO, 1997). Esse formato permitiu que todas participassem desenvolvendo novas possibilidades de relações de apoio e cuidado. As frases utilizadas no decorrer do trabalho foram extraídas de atividades realizadas com as encarceradas, como por exemplo: levamos diversas figuras e pedimos para cada uma escolher a que mais se identificasse e a partir daí justificar sua escolha; em outro momento levamos perguntas que as fizessem refletir sobre si mesmo, perguntas como “quais são os seus medos?”, “o que eu quero para o futuro?”, entre outras.

Fonte da imagem: http://mairafernandesbittencourt.blogspot.com.br/2012_07_01_archive.html

“Essa imagem demonstra a dor, meu desespero, a vida que eu tinha, hábitos…
Nunca me passou que eu iria chegar a usá-las.
Ainda me dói muito usá-las, ficou marcado.
Cada vez que eu tenho que usá-las, é como se eu fosse um monstro, um bicho do qual as pessoas têm medo, ao me verem usando isso.
Dói, mas espero nunca mais me constranger,
Não vou me permitir passar por isso novamente. ”

E assim fomos construindo a relação deste grupo com transparência, compromisso, dedicação e sigilo. Sempre deixando claro para elas que o nosso desejo era que ninguém se sentisse tolhido em sua forma de expressão (gesto, olhar, falar, chorar etc.). Dentro de um grupo, todas as formas de expressão são importantes, a comunicação, seja qual for, deve ser espontânea e, acima de tudo, as diferenças individuais devem ser respeitadas (ZIMERMAN; OSÓRIO, 1997).

No nosso primeiro encontro com o grupo de mulheres foi um momento de apresentação. O grupo pôde conhecer as estagiárias e vice-versa. Foi um momento de interação e integração, onde pudemos falar sobre o grupo, os encontros futuros e as expectativas das encarceradas sobre o mesmo.

Já de início, pudemos perceber que elas se dispuseram a falar sobre suas vidas, experiências, medos, dúvidas, que, em consenso geral, eram um pedido de socorro.

Junto com elas escolhemos um nome para o grupo, que passou a chamar-se “OUTRO OLHAR”, um nome forte, marcante, que traz no seu íntimo: esperança. Cada uma delas fez questão de dizer o que significava este outro olhar para si a cada momento que passamos ali.

Quais são os meus medos?
Minha família parar de me apoiar e meus filhos,
no futuro, jogarem essa experiência na minha cara
e não aceitarem minha correção”

No total foram 10 encontros. Ao desenvolver um trabalho como este, encontramos algumas dificuldades. Percebemos a força da resistência quando lidamos com o discurso da segurança institucional na construção de estratégias de promoção de saúde. Um encontro de percepções por vezes antagônicos.  Percebemos o quanto a instituição, no seu cotidiano, produz sofrimento para todas as pessoas envolvidas: trabalhadores e apenadas.  Mas é preciso dizer, que a equipe nos recebeu e nos auxiliou no que foi possível para o desenvolvimento dessa atividade.

Contudo, partimos do olhar de compromisso social que a academia tem com a comunidade, e nos propusermos a somar com o trabalho desenvolvido pela unidade, não apenas como acadêmicas de Psicologia, mas como membros e integrantes de uma sociedade que também tem responsabilidade com a educação e reinserção social dessas mulheres. Esta experiência resgatou em nós o sentimento aguerrido de lutar por uma sociedade mais justa e menos perversa.

Vivenciamos algo que é só nosso, que ninguém nunca vai nos tirar, e que provavelmente não vamos ter a chance de experienciar novamente. Nossa sociedade não faz ideia da força, da coragem, da história, dos erros, dos acertos, da sabedoria, e do ser humano que existe em cada uma daquelas mulheres ali presas. Elas lutam a cada dia de forma individual e coletiva, por seus direitos, pela efetivação de um espaço democrático dentro das instituições, que permita um processo de construção consciente, de aprendizado, de produção de subjetividade, e de sujeitos que batalham pelo direito à autonomia de gerir suas próprias vidas, apesar do regime de isolamento.

Não podemos nos esquecer de que a população carcerária é formada por seres humanos, elas são iguais a nós, mas, que estão presas por terem cometido um ato infracional, ou seja, um erro. Vale lembrar que crime não é doença ou condição genética e que todos somos seres humanos, passíveis de erros. Portanto, a grade e os muros que nos separam delas, se vistas de perto, não são assim tão espessas e distantes de nossa realidade.

Enquanto estagiárias, não temos palavras para descrever o impacto dessa experiência para nossa vida e formação (pessoal, social e acadêmica). Mas podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que este foi um momento especial que tivemos de crescimento na nossa jornada, entendendo que ela também atravessa o ensino.

O grupo era comprometido, forte, integrado, tinha boa comunicação e estava disposto a crescer. As encarceradas encontraram ali um ambiente seguro para expor suas ideias, ao mesmo tempo em que estavam abertas a novas reflexões.

Ao longo dos 10 encontros, experimentando na pele a dor da vergonha; do preconceito; da discriminação; da desigualdade; da humilhação; do esquecimento; do abandono; da privação de liberdade; do desrespeito; da falta de oportunidade; da condenação (de todos os tipos de condenação), que aquelas mulheres – e outros tantos como elas – sofrem.

Fonte da imagem: http://padom.com.br/a-verdadeira-auxiliadora/

“Eu me identifiquei com a figura porque parece ser uma pessoa triste e solitária.
Hoje estou me sentindo assim. ”

Não queremos aqui levantar uma bandeira a favor ou contra seus atos, que já foram julgados, e pelos quais elas já pagam sua dívida com a sociedade. De outro modo, nossa bandeira é a favor da vida, e de uma nova oportunidade para essas mulheres – essa ideia se mostra tão arbitrária se considerarmos que para muitas delas tal oportunidade seria a primeira – construírem uma história de vida da qual possam se orgulhar, e realmente aprender com seus erros.

Para além dos resultados positivos, esta intervenção já teria sido gratificante, só pelo simples fato do aprendizado que tivemos e do quanto cada minuto lá dentro mudou a percepção acerca da nossa sociedade. No final de cada encontro, descobríamos algo novo em cada uma das participantes. Houve mútua troca de experiências. Foram momentos de renovo, que resultaram num misto de descobertas, aprendizado e lição de vida.

Diante de todos os desafios no início do estágio, o foco principal não era saber o porquê elas estavam ali, ou seja, quais delitos foram cometidos, mas sim um “outro olhar”, como o nome do grupo propriamente dito. O que valia mais nos encontros era a singularidade de cada uma, os desabafos, os sorrisos, as lágrimas, os momentos compartilhados e a história de vida.

Ao final de cada encontro, saíamos daquela instituição com a sensação de dever cumprido, pois como relatado pelas mesmas, aquele “era o dia mais esperado da semana”. Entendemos a importância do nosso apoio.

É preciso agradecer e reconhecer quão grande e importante foi esta experiência para nós em nível individual, pessoal, social, acadêmico e profissional. O privilégio de conhecer essas mulheres nos permitiu constatar que o sistema prisional e as políticas públicas em geral precisam urgentemente de melhorias, e a existência da banalização do ser humano, da vida; a ineficácia da ressocialização; o futuro incerto e sem perspectivas desses homens e mulheres que só querem/precisam de uma chance para fazer/ser diferente.

 

Referência:

ZIMERMAN, David E.; OSORIO Luiz Carlos [et.al.]. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

Nota:

Os trechos de reflexões dispostos ao longo do texto são de autoria das encarceradas de um presídio feminino do Tocantins como resultado das dinâmicas ao longo dos encontros. Zelando pela imagem pessoal, o grupo reserva o direto de manter o sigilo de suas identidades.