Meu trabalho me adoece? – (En)Cena entrevista Ana Magnólia Mendes

Após a realização do I encontro sobre Trabalho e Saúde realizado pela Universidade Federal do Tocantins, em Palmas, que teve por objetivo abrir espaço para os trabalhadores discutirem as questões relacionadas ao trabalho e sofrimento, o (En)Cena conversou com a renomada conferencista Dra. Ana Magnólia Mendes sobre os desdobramentos da escuta analítica do sofrimento do trabalho, que se desdobra na Clínica Analítica do Trabalho. O texto com os principais temas abordados durante a entrevista você confere logo abaixo.

Ana Magnólia Mendes – Foto: Patricio Reis

(En)Cena – Explique o que é a escuta analítica e como ela culmina na Clínica Analítica do Trabalho?

Ana Magnólia Mendes – A Clínica do Trabalho referenciada na Clínica Psicanalítica como está mencionado no I Encontro sobre Trabalho e Saúde é um desdobramento da proposta de Christophe Dejours da Clínica do Trabalho e da Ação, que tem origem na metodologia da Psicodinâmica do Trabalho. O desenvolvimento da clínica do trabalho na Associação de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis da Região Centro Norte de Palmas-TO (Ascampa), que foi a tese de doutorado da professora Liliam Deisy Ghizoni, nos ajudou a sistematizar alguns dispositivos clínicos para a escuta do sofrimento no trabalho. Essa sistematização gerou um livro que se chama Clínica Psicodinâmica do Trabalho Sujeito em Ação, que foi publicado em 2012 pela Juruá.

A partir desta experiência metodológica de testar esses dispositivos da escuta conseguimos responder alguns questionamentos que nós fazíamos (qual a potência política da Clinica do Trabalho; como fazer para que a mobilização subjetiva e política aconteçam; se a metodologia enquanto pesquisa era suficiente para produzir essa mobilização política ou teríamos que desenvolver outros dispositivos metodológicos). Foi então que neste trabalho com a Ascampa e o trabalho com outras categorias profissionais (bancários, professores, policiais entre outras), que percebemos a necessidade de dar outro foco na forma de escutar esse sofrimento para além da pesquisa.

Então, começamos a propor além da sistematização de alguns dispositivos do método de pesquisa clínico proposto por Dejours, o desenvolvimento de alguns dispositivos vinculados a uma prática, a uma técnica relacionada a essa clínica. Nesse contexto, a Psicanálise é uma abordagem importante na própria psicodinâmica do trabalho, e se tornou fundamental para essa clínica, que desenvolvemos atualmente. Estamos estudando no laboratório nesse momento: de que maneira os dispositivos da clínica psicanalítica, e particularmente, da clínica Lacaniana (considerando três dispositivos: interpretação, silêncio e transferência) podem contribuir para uma escuta psicanalítica do sofrimento, de maneira que possa produzir efeitos no posicionamento subjetivo dos sujeitos que participam dessa clínica e os efeitos políticos que ela pode desencadear, para além dos já produzidos pela pesquisa clínica em psicodinâmica do trabalho.

Com isso não estou dizendo que a pesquisa em clínica do trabalho como proposto por Dejours não é ação política, e que pode provocar efeitos na posição subjetiva. Apenas identificamos a partir da nossa prática a necessidade de um deslizamento da função desse clínico do trabalho, do lugar de pesquisador clínico para um clínico pesquisador. Isso vai trazer novas discussões teóricas e técnicas na condução da própria escuta. Por isso a aproximação da Clínica Psicanalítica, que não é uma aplicação da técnica psicanalítica ao trabalho, vez que não trabalhamos com a associação livre, mas a apropriação dos dispositivos como a transferência para, articulado a dimensões teóricas da Psicanálise, construir uma proposta para a prática em  Clínica do Trabalho.

(En)Cena – Como surgiu a ideia de desenvolver essa metodologia?

Ana Magnólia Mendes – Essa metodologia surgiu em função de que o sofrimento não é acessado de forma direta. Ele é acessado a partir das defesas e muitas vezes representado a partir de vários sintomas. Isso requer a construção de um quadro nosológico de Psicopatologia do Trabalho. Que seria entender como esses sintomas e defesas se estruturam e como impedem que esse sofrimento seja revelado. Então quando um pesquisador vai fazer a escuta do sofrimento na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho ou da Clínica Psicodinâmica do Trabalho, isso requer também um enquadramento teórico para compreender qual a posição subjetiva desse sujeito, que sintomas e defesas estão instalados frente ao real do trabalho, para que se tenha acesso a esse sofrimento. Com isso nos começamos a identificar que quando fazemos uma escuta clínica onde você vê a relação entre defesa, sofrimento e trabalho, a própria teoria da Psicodinâmica do Trabalho não dá conta desse quadro nosológico psicopatológico para você entender como se estruturam essas defesas em relação aos sintomas que o sujeito desenvolve. Aí temos um conceito importante do Lacan, no qual o sujeito pode se apegar aos sintomas e ter um gozo com isso, significando que o sofrimento continuará encoberto, negado e o sistema defensivo atuando como resistência para o reposicionamento subjetivo e político. Nesse caso, a passagem da elaboração para perlaboração é comprometida, repercutindo na passagem do espaço de discussão para a deliberação e ação, que é um dos princípios da clínica do trabalho.

Então, essa perspectiva teórica fez com que repensássemos a própria metodologia. Com isso, prática e teoria caminharam juntas. Se de um lado queríamos produzir um efeito político na Clínica e nesse caso o trabalho com os catadores da Ascampa foi muito importante, por outro lado, como é que tiramos o sujeito da posição subjetiva sem usar certos dispositivos como a transferência e a perlaboração advinda da interpretação? Por essa razão, pelo sofrimento não ser claro, direto e ainda envolver para algumas pessoas um apego, que cria uma resistência em se livrar dele, é importante que se compreenda a nosologia dessas patologias para entender porque o sintoma tem uma função na vida do sujeito de modo que ele volta a repetir os comportamentos. Ou seja, há um apego a estes sintomas, que pode se caracterizar na repetição dessa relação com a autoridade, por exemplo representada pelos gestores, como uma forma de se proteger de assumir a alteridade e a independência afetiva e de pensamento, que é uma ação política ao transformar o sofrimento e dar um outro destino a ele, assumindo o protagonismo na cena do trabalho, saindo do lugar de estrangeiro, de estranhamento e alienação como sujeito do trabalho.

 

(En)Cena – Esse “apegar” seria o lugar de conforto, a letargia ou o medo de mudança?

Ana Magnólia Mendes – O sujeito quando se apega aos seus sintomas, traduzindo em uma linguagem comum, seria isso mesmo. Porque quando você abre mão do seu sintoma o que fica nesse lugar? Então a própria falta, angustia, insegurança, o medo vão fazer com que esse sujeito não queira abandonar aquele sintoma. Nesse contexto, o sintoma não tem uma conotação negativa ou positiva, mas, por exemplo, uma repetição como o “to cansado”, todo o tempo, isso é um sintoma. Na medida em que o sujeito tem uma queixa, ou o sintoma dele é estar o tempo todo cansado, é um sujeito que vai estar sempre nesta zona de conforto. Como ele está cansado, isso é um álibi para ele não assumir seu desejo, ele estabelece uma solução de compromisso para dar conta do desejo que rompe com o “dever”, com a demanda enquanto exigência impossível de ser alcançada. Claro, que essa situação é confortável para ele.

Não necessariamente vai dar uma anestesia, mas não deixa de ser isso porque quando você não conhece esse sintoma e a ideia não é eliminá-los, mas entender a história deles, a função que eles exercem e que outra trajetória ou destino eles podem ter, para de alguma forma desapegar dos sintomas, se apropria dessa trajetória e dar um novo destino. Com isso surge o conceito de emancipação, de alteridade e independência, que também não deixa de ser uma autoridade sobre si mesmo, que vai levar o sujeito a uma solidão, um desamparo, porque quanto mais ele é desalienado ou quanto mais ele tem essa autoridade sobre ele, mas ele se desvincula de uma demanda sobre ele, que não é do lugar do seu desejo. Então a emancipação e a alteridade são solitárias. O sujeito vai assumir a sua condição humana mais básica, que é o desamparo, abandono e dependência. Então não e tão simples desapegar dos sintomas, das queixas.

Voltando ao exemplo do trabalho desenvolvido com os catadores da Ascampa, eles têm um sintoma que é não conseguir se desvincular da figura de autoridade paterna que a própria sociedade guiada pelo capital flexível produz. Então eles ficam nessa queixa, com isso não assumem essa               emancipação e essa alteridade, apesar de eles terem muita mobilização e recursos para isso. Então, precisa construir um laço social, que envolve o psíquico e o social que nós temos buscado desenvolver na nossa prática em clínica do Trabalho, e a metodologia e teoria da psicodinâmica do trabalho não tem se mostrado suficiente pra fazer essa articulação entre essa posição subjetiva do sujeito, a posição coletiva do grupo e o efeito político. Para articular essas três questões é que nós incluímos a psicanálise e os dispositivos de escuta analítica, porque não é só a escuta clínica da pesquisa, que visa entender e interpretar, mas é como que esse pesquisador se transforma em um clínico, como fazer uma intervenção direta no coletivo de trabalhadores para tratar esse apego aos sintomas, essa psicopatologia da posição subjetiva, fazendo com que o sujeito e o coletivo se desloque da aceleração e fadiga para a vitalidade, da exigência e necessidade para o desejo, da impotência para a potência. Então ele se deslocar desses três eixos seria ele reconstruir essa trajetória desses sintomas.

Nesse contexto, como que o clínico do trabalho vai fazer uma intervenção se ele não tem um quadro teórico explicativo de como esses sintomas se alocam ou se instalam a partir de uma organização do trabalho que vai acessar esse tipo de sintoma. Então o clínico do trabalho teria nessa escuta analítica e que aí uma proposta não só metodológica, mas teórica também. Continuamos usando o quadro teórico da Psicodinâmica do Trabalho, é uma referência importante, afinal, a Clínica do trabalho foi criada pelo Dejours, além disso o conceito de mobilização subjetiva é central, uma enorme contribuição, muito mais do que o conceito de sofrimento ou de defesa que fazem parte do campo de estudo da Psicanálise.

 

(En)Cena – Como é feita essa intervenção, no sentido de promover a politização do sujeito e sua desalienação, sem ter a contrariedade do empregador?

Ana Magnólia Mendes – Isso é praticamente impossível. Nessa questão são duas coisas, primeiro a aplicação dessa metodologia em uma organização formal e estruturada é muito difícil, extremamente desafiante e não sei se vai ser possível um dia. Porque é muito complicado dentro de um modelo capitalista você aplicar um dispositivo que busca a emancipação política de um grupo, isso não tem sentido. Um dono de empresa, um empregador seja ele privado ou público dificilmente vai querer esse tipo de trabalho na sua empresa. Então nosso trabalho é com sindicato, com alguns órgãos vinculados com serviços públicos (associações que cuidam de crianças e idosos, por exemplo), alguns serviços com professores, com a saúde, mas esse trabalho não tem sido feita com empresas formais, estruturadas e burocráticas porque não cabe é na contramão. No caso da Ascampa foi possível o trabalho porque eles não são uma empresa, existe o desejo de se transformar em cooperativa e aí teria que se trabalhar o eixo exigência, necessidade e desejo deles.  Sempre as relações hierárquicas de poder vão causar resistências seja em um modelo Taylor-Fordista, de forma mais intensa, ou em outro modelo.

Então ouve essa dicotomia na Ascapa, entre o líder e o grupo, e aí voltamos naquilo que eu falava antes, uma repetição de um sintoma de algo que é do próprio discurso capitalista se sobrepondo ao próprio desejo deles de quererem ser uma cooperativa, com isso evidentemente houve dificuldades e resistências do líder em relação ao grupo e do grupo em relação ao líder.  Inclusive houve um racha no grupo, porque o líder saiu da Ascampa, ou seja, talvez tecnicamente não conseguimos, na época com a Clínica do Trabalho, mesmo com a inclusão desses dispositivo, o resultado não foi totalmente satisfatório. Mas foi a partir deles que essas perguntas fizeram com que eu me voltasse mais para a Psicanálise do ponto de vista teórico e prático. Na época nós não tínhamos avançado nesse sentido e se tivéssemos talvez tivesse sido diferente a forma com que iríamos trabalhar essa relação e talvez não tivesse ocorrido esse rompimento que houve. Mas poderemos fazer outras análises com outros dispositivos vinculados a essa questão do sintoma, do apego e das repetições para ver como vai se posicionar essa questão do poder em novas clinicas que envolvam esse tipo de liderança.

Fazer clínica com chefes, gestores é uma coisa muito nova. Temos até começado, mas sinceramente não sei se é possível porque os gestores não têm um coletivo de trabalho, são extremamente individualistas, são representantes claros desse capital e eles não compartilham a inteligência prática porque é uma ameaça de perder o cargo. Então as condições de mobilizar esse grupo, que está muito impregnado dessas patologias e é um grupo sintomático, ou seja, os gestores de uma empresa formal Taylor-Fordista são o próprio sintoma da organização e sem a existência deles a organização não existiria. Pois eles reproduzem o discurso do capital e transmitem isso, são os mediadores que vão lá e dizem ‘é isso que vocês têm que fazer’.

(En)Cena – Essa relação entre trabalho e sofrimento ela prioriza o sofrimento psíquico, mas ela também respinga no físico?

Ana Magnólia Mendes – Sim, porque na realidade o sofrimento não é fragmentado (sofrimento do corpo, da cabeça, social), o sofrimento é único e ele é singular pro sujeito. Agora, o porquê que ele foi provocado e os destinos que ele vai tomar é que são diferentes. Como se fosse um rio, que tem a fonte que pode ser social, física, psíquica, política e se mistura produzindo um sentimento no sujeito que é o sofrimento em si, a angústia, medo e insegurança e depois isso vai ter um destino. A partir disso teremos os sofrimentos ético, criativo e patogênico que são os que estamos estudando, embora existam outros. Um desses outros destinos é o corpo, que são as doenças psicossomáticas, todas as dores físicas que representam um sofrimento que foi negado, que não foi elaborado e que aparecem no corpo.

 

(En)Cena – Na prática como é feito esse trabalho da Clínica Analítica do Trabalho?

Ana Magnólia Mendes – Nós temos trabalhado com sessões coletivas e também trabalhos individuais. Atualmente nos temos um serviço na Universidade de Brasília (UNB), no Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos, que é uma Clínica Escola, de atenção ao sofrimento psíquico do trabalhador. São práticas em clínicas do trabalho, onde os estudantes de Psicologia e Psicólogos vão atender trabalhadores. Então o trabalhador pode procurar a Clínica da UNB se ele percebe que está vivendo algum problema relacionado ao trabalho e que está provocando um mal estar, uma doença, um sofrimento. Esses atendimentos são individuais ou em grupos. Geralmente fazemos vinte encontros de 50 minutos no individual e entre 15 e 20 encontros de 2 horas no coletivo, com grupos de seis a oito pessoas.

Mas o estudo também é feito através de pesquisadores que estão produzindo dissertações, teses de mestrado. Onde eles vão buscar os trabalhadores que já tem uma demanda, como foi no caso da Ascampa.  Nesse caso são encontros semanais de 50 minutos o individual e 2 horas o coletivo. Temos vários instrumentos e dispositivos como memorial, diário de campo, fazemos a supervisão clínica com especialistas, geralmente trabalhamos em duas pessoas quando é no grupo.

No atendimento individual temos atendido muitos trabalhadores vítimas de assédio moral, vítimas violência que se sentem oprimidos ou com problemas psicossomáticos vinculados ao trabalho (gastrite, hipertensão e outros sintomas) que agora procuram esse serviço, que de alguma forma vai ser nosso campo de pesquisa. A partir da prática, que envolve o desenvolvimento de uma técnica, que é praticamente um campo de trabalho onde surge o psicólogo clínico do trabalho. Com essas intervenções poderemos fazer a construção teórica das pesquisas e do conhecimento científico.