O humano, a loucura, a cidade

Pagamos um preço alto por nossa condição de humanos. Angustiamo-nos com as coisas mais cotidianas: com a conta que está por vencer, mesmo sabendo que temos dinheiro para pagá-la; com a possibilidade de sol ou de chuva, mesmo impotentes em relação ao clima; com os filhos, quando os temos; e também com a falta deles, quando eles não vêm. Sofremos por tudo aquilo de incerto que nos cerca e, como não temos muitas certezas, sofremos por quase tudo. Temos medo também do que nos é certo. A morte, a certeza mais definitiva, apavora-nos.

Foto: Cristiano Mascaro

Por isso, enlouquecemos. A loucura é um fenômeno exclusivamente humano. Bichos não ficam loucos, pois enlouquecer é algo tão complexo que exige de quem o faz características só encontradas no pensamento do homem. Portanto, enlouquecer – de uma certa forma – é mais uma das certezas que temos. Se não é uma certeza para cada um de nós, o é para a humanidade como espécie. Não se conhece época ou cultura sem loucos.

Caminhando pela moderna cidade de Palmas, arrisco-me na escuridão das ruas (pela falta de iluminação pública) e no meio dos carros (pela falta de calçadas). Depois de notar que me esqueci, mais uma vez, de colar em minha camiseta uma faixa reflexiva para não ser atropelado, sentindo-me um alienígena e quase que pedindo desculpas ao mundo por minha atitude imprudente de voltar caminhando do trabalho para casa, decido andar pelas ruas internas das quadras. Lá, a cada vinte passos, preciso voltar a arriscar-me pela rua, já que vários moradores têm o curioso costume de estacionar seus carros sobre o passeio. Sem lugar, completamente sem lugar…

Mesmo assim, a caminhada me faz pensar. Entre um e outro susto, carros passando colados a mim, pergunto-me que espécie de espaço se está construindo aqui. Que cidade é esta em que não há lugar para gente?  Um motorista me olha com cara de poucos amigos. O pensamento mais que os pés, acostumados ao caminho de casa, divaga. Um automóvel entra em meu caminho, ou melhor, eu no dele. Ouço um xingamento. Penso em outras situações e, com pesar, noto que o trânsito é só mais uma – entre muitas – em que as pessoas, aqui, sentem-se como intrusas. Uma freada e outro xingamento. Penso agora nos que enlouquecem. Eu, que me considero quase normal, sinto-me sem canto. O que dizer dos que enlouquecem? Uma buzina quase me faz perder o foco. Onde estariam, a estas horas, os loucos daqui? Trancados em casa? Amarrados a uma cama de hospital? Medicados, trancados por dentro? Outra buzina. Sem lugar, completamente sem lugar…

A loucura foi acorrentada e afastada do convívio da cidade há cerca de 300 anos. Há duzentos, decretou-se que ela era uma doença. A partir daí, presa aos grilhões dos esquemas diagnósticos, a loucura pôde ser desacorrentada, mas permaneceu apartada da cidade, enclausurada no hospital. Foi lentamente deixando o manicômio após o advento das medicações que, se mal usadas, podem representar um novo aprisionamento, ainda que com lustrosas e modernas correntes. Hoje, com o desenvolvimento das diversas especialidades que se debruçam sobre a loucura, o louco parece dar mais um passo em seu longo e demorado caminho de volta à cidade. Contudo, cabe perguntar: em direção a que espécie de cidade o louco se encaminha?

Foto: Cristiano Mascaro

A cidade contemporânea, pretendendo-se eficiente e ordenada, não consegue, ao que parece, comportar a desorganização que a diferença em geral provoca. É como se houvesse, na cidade, um texto rígido a se seguir, sem possibilidade de rasuras. Toda nova escrita só pode ser admitida se não comprometer a ordem e a finalidade do texto como um todo. Mas, neste ponto, é importante uma observação: o ser humano, em geral, não segue textos e se os segue rigidamente, perde muito de sua humanidade.

Não é a toa que resolvemos um dia afastar a loucura de nosso convívio. Ao lado de razões de ordem econômica, decidimos manter a loucura longe de nossos olhos porque ela nos faz recordar uma daquelas certezas que nos angustiam. Conviver com o louco nos faz lembrar, de pronto, nossa condição de humanos e, tão só por isso, passíveis de enlouquecer. Portanto, negamos também nossa própria humanidade quando nos privamos do convívio com aquele que enlouquece.

E aqui, na jovem e modernosa cidade de Palmas, onde o espaço urbano possui um texto mas não conta histórias – porque quase não as tem para contar – o humano, coitado… Sem lugar, completamente sem lugar.