Before Sunrise – Antes do Amanhecer

“Acredito que se há algum Deus, ele não estaria nem em você nem em mim, mas nesse espaço que existe entre nós. Se há algum tipo de magia no mundo, ela deve estar na tentativa de entender e compartilhar algo com alguém. Sei que é praticamente impossível conseguir. Mas e daí? A resposta deve estar na tentativa.” (Celine)

 

“Antes do Amanhecer” estreou em 1995. Nessa época, a internet ainda não tinha sido massificada, não havia Google, nem Facebook e os celulares se assemelhavam a um tijolo. A contextualização é importante porque a história do filme poderia ser inverossímil nos dias de hoje, já que as relações, por mais breves que sejam, vêm sempre acompanhadas por um agregado de informações, seja um “curtir” em uma rede social, ou uma foto com filtro publicada no Instagram.

Celine e Jesse, uma francesa e um americano, ambos com 23 anos, se conhecem em um trem em direção a Viena. Resolvem, num impulso, passar o final da tarde e a noite juntos na cidade. Na manhã seguinte, ela seguirá para a França e ele partirá num voo para os Estados Unidos. Mas, talvez, a história se resuma numa simples constatação dita por Celine: “Isso parece uma fantasia masculina: conhecer uma garota francesa num trem, transar com ela e nunca mais vê-la novamente.

Navegando a ermo pela net, constato que “Antes de Amanhecer” se tornou um filme inesquecível para muita gente. E, quando penso sobre isso, acredito que uma das razões seja o fato das duas pessoas retratadas ali, apesar de serem tão singulares, parecerem tão reais. Elas podem ser alguém que já encontramos em algum lugar distante, quando estávamos sozinhos, ou alguém que ainda iremos encontrar. E enquanto pipocam por aí filmes que usam uma série de artifícios para servir de base para uma história de amor, esse filme tem apenas dois personagens nomeados (Celine e Jesse). Não há a divertida melhor amiga da mocinha, nem a mãe ciumenta do rapaz ou o chefe irritante. E é isso que torna o filme tão interessante, ele mostra que, de fato, cada um de nós carrega consigo um diversificado universo, que pode vir à tona quando dialogamos com alguém sem tantas amarras sociais e compromissos. Por isso, às vezes, é tão encantador simplesmente ouvir/ver duas pessoas conversarem.

Richard Linklater (diretor e roteirista), Ethan Hawke e Julie Delpy criaram um dos momentos mais intimista do cinema ao permitir que tantas pessoas pudessem enxergar o mundo que existe no interior dos dois personagens, acompanhando-os em uma noite de suas vidas. Se Celine e Jesse não tivessem a certeza da brevidade do encontro, muito provavelmente não se revelariam tanto.

Celine: Eu acho que é porque eu sempre tenho esse sentimento estranho de que eu sou essa mulher velha se preparando para a morte. De que minha vida é um resumo das memórias dela.

Jesse: Isso é tão louco. Sempre penso que ainda sou um garoto de 13 anos, que ainda não sabe como ser um adulto, fingindo viver minha vida, cuidando para quando realmente for um. Como se estivesse num ensaio para uma peça de teatro.

Celine: Então, lá na roda gigante, foi uma mulher velha beijando um jovem garoto, certo?

A velha e o menino que andam pelas ruas de Viena, talvez pelo pouco tempo que lhes resta, têm uma urgência em falar sobre os mais variados assuntos. Nas palavras jogadas de forma desordenada e meio caótica, tem-se de tudo, de Deus à morte, de casamento Quark a ritos sexuais de insetos.

“Eu sempre gostei da ideia de que todas essas pessoas desconhecidas estão perdidas no mundo. Quando eu era pequena, pensava que se nenhum conhecido seu soubesse que você havia morrido, não seria tão ruim assim. As pessoas podem inventar o melhor e o pior pra você”. (Celine)

Imaginem o quão libertador seria se encontrássemos um desconhecido em algum lugar do mundo e pudéssemos simplesmente expor a ele nossos mais estranhos pensamentos sem termos que criar artifícios para nos moldar ao precioso círculo da “normalidade”. Então, poderíamos divagar – como Jesse – e, em um dado momento, refutar religiões ou corroborar com algum tipo de crença maluca ou ingênua:

50 mil anos atrás não havia nem um milhão de pessoas no planeta.  Há 10 mil anos havia 2 milhões de pessoas. Agora temos cerca de 5 ou 6 bilhões,  certo? Então, se temos uma alma individual, de onde vieram todas as outras? Será que as almas novas são uma fração das originais? Porque se elas são, isso representa uma divisão de uma alma em 5 mil, apenas nos últimos 50 mil anos. O que não é nada comparado à idade da Terra. Na melhor das hipóteses, somos uma dessas pequenas frações… Será por isso que estamos todos tão afastados? Será por isso que somos tão limitados? (Jesse)

E em meio a uma explosão de diálogos sobre os assuntos mais variados percebemos que Jesse e Celine passam por vários estágios emocionais. Esses estágios vão desde o cinismo perante alguns fatos da vida e a uma visão pessimista sobre alguns aspectos da natureza humana até a simples constatação de que alguns dos gestos mais simples e cotidianos podem ser os mais significativos, aqueles que nos lembraremos mesmo diante da implacável passagem do tempo.

“Gosto de sentir seus olhos em mim quando desvio o olhar.” (Celine)

Linklater conseguiu transformar a cidade de Viena em uma espécie de folha em branco para que Celine e Jesse escrevessem sua brevíssima história. E isso parece que foi possível somente porque eles não tinham um passado juntos ou a possibilidade de um futuro. De certa forma, pensar sobre isso provoca até um certo incômodo, especialmente quando percebemos que a rotina e todas as obrigações sociais agregadas a ela limita uma característica aparentemente tão humana: a capacidade de enxergar o outro.

“Eu tenho a sensação de que estamos sonhando. […] É como se o tempo em que estamos juntos fosse só nosso. Como se fosse uma criação nossa.” (Jesse)

“Como se eu estivesse no seu sonho, e você no meu, ou algo do tipo.” (Celine)

Essa liberdade que eles sentem nessa convivência tão súbita e breve e sua associação às manifestações que rementem aos sonhos é, em alguns aspectos, bem freudiano.

A fórmula que, no fundo, melhor atende à essência do sonho é esta: o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (recalcado). O estudo do processo que transforma o desejo latente realizado no sonho no conteúdo manifesto do sonho – processo conhecido como trabalho do sonho – ensinou-nos a maior parte do que sabemos sobre a vida mental inconsciente. (FREUD, 1924 [1923]/1987, p.249).

Ou seja, se essa relação só existe para eles como se fosse vivida apenas numa espécie de sonho, então não há compromisso com a realidade, logo também não precisa estar presa às regras que acompanham nosso estado consciente.

Telas de Georges Seurat

“Suas figuras humanas são sempre tão transitórias.” (Celine)

Quando Celine vê um cartaz de uma exposição das telas de George Seurat, um pintor francês do século XIX, e fala do quanto seu trabalho a impressiona, percebemos que as figuras humanas tão nebulosas naquelas pinturas funcionam como uma metáfora para o filme. A técnica usada por Seurat, denominada Pontilhismo, vem de uma vertente do Impressionismo e utiliza os pontos justapostos como uma forma de apresentar “o desprezo dos impressionistas pela linha, uma vez que esta é somente uma abstração do Homem para representar a natureza”.  Então, considerando nossa transitoriedade e a impossibilidade de delimitarmos linhas precisas que nos separem de indivíduos e coisas, parece mais fácil entendermos a ligação estabelecida de forma tão rápida e tão profunda entre essas duas pessoas.

Quase 20 anos depois do primeiro filme, a história de Celine e Jesse se transformou numa trilogia, em um caso único no cinema em que a vida de dois personagens acompanha o processo de amadurecimento dos próprios atores. Em 2004, eles mostraram o que aconteceu com os dois após os nove anos que se passaram depois do primeiro encontro em Viena (Antes do Pôr-do-Sol) e em 2013 ficamos sabendo como estão suas vidas aos 40 (Antes da Meia-Noite). E em meio há tantos filmes com histórias de amor superficiais ou estúpidas demais, a história destas duas pessoas nos faz pensar inevitavelmente na variável tempo, tão temida e complexa.  Diante das rugas inevitáveis, das responsabilidades que acompanham a vida adulta e do pouco tempo destinado à reflexão e aos sonhos, acompanhar uma história assim provoca até um sopro de esperança. Mesmo que não saibamos definir, ao certo, que tipo de esperança é essa.

REFERÊNCIAS:

FREUD, S. Uma breve descrição da psicanálise (1924[1923]). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. XIX, p.235-259.

Leia mais sobre a trilogia “before”:

Antes do Pôr-do-Sol: http://ulbra-to.br/encena/2014/01/14/Before-Sunset-Antes-do-Por-do-Sol

Antes da Meia-Noite: http://ulbra-to.br/encena/2014/01/15/Before-Midnight-Antes-da-Meia-Noite

 

FICHA TÉCNICA:

ANTES DO AMANHECER

Título Original: Before Sunrise
Direção e Roteiro: Richard Linklater
Elenco: Ethan Hawke e Julie Delpy
Ano: 1995

Doutora em Psicologia (PUC/GO). Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Ciência da Computação pela UFSC, especialista em Informática Para Aplicações Empresariais pela ULBRA. Graduada em Processamento de Dados pela Universidade do Tocantins. Bacharel em Psicologia pelo CEULP/ULBRA. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.