Sentidos Teóricos da Humanização e seus desafios concretos no cotidiano

Os múltiplos entendimentos trazidos pela palavra humanização apontam atributos de vários sentidos, tanto teóricos como práticos levando em consideração os desafios sociais, econômicos e políticos para sua efetivação no SUS. Existe imprecisão e até mesmo confusão, que se expressam em várias ações ditas humanizantes ou humanizadoras.

Inicia-se o assunto sobre humanização a partir do reconhecimento da desumanização, trazendo o questionamento humano sobre a viabilidade da primeira a partir da constatação da segunda. Conforme explicita Paulo Freire (2005, p. 32), “ambas, na raiz de sua inconclusão, os inscrevem (os homens enquanto seres humanos) num permanente movimento de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão”. Para Freire, a humanização é uma vocação do ser humano, embora uma vocação negada e afirmada na própria vocação. É negada na existência da injustiça, da exploração, da opressão, da violência, da dominação dos que oprimem e dominam. É afirmada no exercício da liberdade, da justiça, da luta daqueles que sofrem a opressão e a dominação, ao recuperarem a “humanidade roubada” (FREIRE, 2005).

Por se tratar de uma realidade concreta e contraditória instaurada na necessidade da existência da humanização a partir do conceito de desumanização, Freire (2005) também aponta a superação desta contradição de maneira objetiva. Existe a exigência da superação, da transformação da situação concreta geradora da opressão, neste caso, da desumanização (repetido).

A transformação objetiva da situação desumanizadora é combatente da imobilidade subjetivista que espera pacientemente que um dia a opressão desapareça.

A desumanização (situação opressora) não se vê exclusivamente em quem tem a humanidade roubada, mas também nos que roubam, como uma imagem disforme da vocação original. É distorcida historicamente, mas não é histórica. Se a aceitássemos como sendo vocação histórica do ser humano, seria aceitar cinicamente ou desesperadamente essa realidade sem mais nada ter a fazer, além disso. A busca pela humanização, pela liberdade, pela desalienação, pela condição do ser humano como pessoa para si, seria sem sentido. Essa busca parte do reconhecimento da desumanização, embora seja concreta na história, não é um “destino dado”, mas resultado da ordem social injusta geradora da violência dos que oprimem e dominam. A humanização é o ser mais enquanto a desumanização é o ser menos no pensamento de Paulo Freire. A humanização se faz necessária num mundo onde o ser humanose encontra afastado de sua humanidade objetiva e subjetiva. Suas ações se encontram normatizadas de proibições e valorações, simbologias e mitos e ritos que ditam o que e como fazer (PAIM, 2009).

Com isso, não se está negando a subjetividade, mas o subjetivismo. Não se pode pensar em objetividade sem considerar a subjetividade. Uma está imbricada na outra e não existe uma sem a outra. Portanto, não há dicotomia. Há contradição, ou seja, uma e outra ocupam seu lugar na realidade.

A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade (FREIRE, 2005, p. 41).

A compreensão confusa entre o conceito de subjetividade com subjetivismo, seria a negação da importância deste conceito, seria a decadência para um simplismo pautado na ingenuidade. O pensamento freireano, aponta para a necessidade de uma humanização por haver uma desumanização histórica. Neste sentido, o SUS, por meio da política de humanização reconhece esse processo amplo em que se constitui a desumanização na sociedade brasileira. No entanto há que se observar que

o SUS é apenas uma das respostas sociais aos problemas e necessidades de saúde da população brasileira. Ao lado dele, políticas econômicas, sociais, ambientais são fundamentais para a promoção da saúde e da redução dos riscos e agravos. Reformas Sociais como a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, a Reforma Educacional, a Reforma Política e Tributária constituem, intervenções de amplo alcance, que ultrapassam as possibilidades do SUS (PAIM, 2009, p.75).

O significado de humanização para a o campo da saúde, uma área em que suas práticas se fazem essencialmente necessárias, sob vários olhares, pode ser compreendida como um princípio de conduta de base humanista e ética; um movimento contra a violência institucional na área da Saúde; uma política pública para a atenção e gestão no SUS; uma metodologia auxiliar para a gestão participativa; uma tecnologia do cuidado na assistência à saúde (RIOS, 2009). No entanto, “os esforços para a humanização da atenção com práticas de acolhimento nas unidades ainda não foram suficientes para a mudança do modelo de desatenção vigente” (PAIM, 2009, p.90). Pode-se verificar que o SUS incluindo a PNH, está em um terreno de tensões e de desafios, no sentido do enfrentamento do modelo privatista neoliberal na saúde, em contraponto à visão biopsicossocial, uma das possíveis respostas gestadas pela ala do modelo sanitarista da saúde.

Na sociedade capitalista o modelo médico-assistencial privatista é o mais (re) conhecido mesmo não contemplando o conjunto dos problemas de saúde em sua totalidade na sociedade brasileira. Voltado à concepção individual, em que o usuário da saúde é dividido em dois grupos: os que podem comprar a mercadoria saúde através dos planos e seguros de saúde e aqueles que não podem comprar, os pobres. “No Brasil, o modelo médico-assistencial privatista tem origens na assistência filantrópica e na medicina liberal, é fortalecido com a expansão da previdência social e consolida-se com a capitalização da medicina nas últimas décadas. Entretanto, esse modelo assistencial que caracteriza a assistência médica individual não é exclusivo do setor privado” (PAIM, In ROUQUAYROL & ALMEIDA FILHO, 2003, p. 569), mas também se vê nas OSS (Organizações Sociais de Saúde), que assumem (terceirizam) o serviço de saúde de norte a sul do Brasil.

Atualmente percebe-se a necessidade de um modelo que não somente altere o modelo pelo modelo, mas o modo de se produzir saúde, ou seja, num movimento contra-hegemônico de quebra de paradigma (COELHO, 2008). Assim, tanto objetivamente quanto subjetivamente, a humanização na saúde é mais que uma proposta de um modelo, mas um novo modo de fazer. Não numa receita perfeita, um caminho em construção no próprio ato de caminhar, enquanto se caminha (CAMPOS, 2007), ou seja, no processo de trabalho nos serviços de saúde.

O processo de trabalho é um espaço interseçor[1] atravessado por distintas lógicas que se apresentam em atos traduzidos na forma atual hegemônica da medicina neoliberal, na forma da atenção gerenciada, nos modelos que se propõem a seguir o eixo das necessidades dos usuários. Têm-se aqui dois lados bem definidos refletidos no interior e no exterior da saúde: o próprio capital articulado ao financeiro, que aparece como atenção gerenciada e o lado anti-hegemônico dos projetos que apontam a saúde como um bem público, patrimônio de toda a sociedade, propriedade coletiva (MERHY, 2002), englobando, gestores, trabalhadores e usuários da saúde como agentes transformadores da realidade através do empoderamento e da emancipação enquanto seres sociais.

Para o autor, o espaço interseçor dos atos de saúde liga o trabalhador (e a gestão) com o usuário de maneira complexa. Não como dois conjuntos separados, mas como dois conjuntos interligados. Ambos estão num espaço comum de interseção entre dois conjuntos num processo de trabalho. No caso do trabalho em saúde, do ato de cuidar depreendido do trabalhador em saúde para o usuário, resulta numa interseção partilhada.

No processo de trabalho em saúde há um encontro do agente produtor (trabalhador/gestão da saúde), com suas ferramentas e conhecimentos e o produto final, que resulta no cuidado em saúde. Para o usuário (agente consumidor), a saúde em si é um valor de uso, algo útil que lhe permite estar no mundo e vivê-lo. As necessidades, do trabalhador e do usuário, as quais fazem parte do mesmo campo de atuação, os colocam como, agentes e consumidores portadores de necessidades macro e micro politicamente constituídas (MERHY, 2002).  O trabalho em saúde é, portanto, um trabalho que reflete um ato vivo, numa relação interseçora entre o trabalhador e o usuário, tendo a gestão como interferência nesta relação.

A humanização, desdobrada no espaço interseçor existente na relação trabalhador, gestor, usuário, é fundamentada no respeito e na valorização da pessoa humana, constituindo um processo que pretende a transformação da cultura institucional, conduzida por uma construção coletiva de compromissos éticos e de métodos para as ações de atenção à Saúde e de gestão dos serviços (RIOS, 2009). Humanizar a atenção à saúde é valorizar o trabalhador e o usuário, considerando o mundo do trabalho como co-gestão e corresponsabilização (PAIM, 2009, p.90). Tanto o trabalhador como o usuário são co-gestores da saúde. São corresponsáveis pelo sistema de saúde e seus serviços. Não se separa a gestão do trabalhador e tampouco do usuário. São sujeitos transformadores da realidade e de seus resultados.

A humanização agrega esses sujeitos e aponta para um entendimento que configuram um núcleo conceitual de humanização, dando ênfase à ética relacional entre usuários e profissionais de saúde. Apresenta-se também a ligada aos direitos humanos, como o direito à privacidade, à confidencialidade à informação, ao consentimento do usuário nos procedimentos médicos e o atendimento respeitoso por parte dos profissionais[2].

A história, marcada por desrespeitos e maus tratos à saúde demonstra que a conquista por direitos sociais, embora iniciada com a Revolução Francesa de 1789, somente se consolida no Brasil no final do século XX, refletido na conquista do direito à saúde, de forma gratuita e universal inaugurada pelo SUS. As teorizações deram lugar às práticas de saúde que entendem o direito à saúde não somente como direito às ações e serviços de saúde, mas como direito ao estado vital saudável (estado de saúde) (PAIM, 2009, p.115). O conceito de saúde atual adotado pela OMS, Organização Mundial de Saúde, extrapola o sentido da ausência de doenças e traz o ideário do pleno bem-estar físico, mental e social, ou seja, não se pode pensar em saúde descontextualizada dos aspectos sociais e psíquicos.

Dessa forma, humanização na saúde implica uma mudança de atitude na gestão dos sistemas de saúde e nos serviços, significando alterar o modo como usuários e trabalhadores da área se integram entre si. Um de seus principais objetivos é fornecer um melhor atendimento aos usuários e melhores condições de trabalho aos trabalhadores.

Humanizar a saúde também significa mudanças nas mentalidades dos indivíduos, mudanças estas criadoras de novos profissionais mais capacitados, que melhoram o sistema de saúde e inauguram novos paradigmas. Pode-se dizer, portanto, que se trata de uma “estratégia de interferência no processo de produção de saúde, através do investimento em um novo tipo de interação entre sujeitos, qualificando vínculos interprofissionais e destes com os usuários do sistema e sustentando a construção de novos dispositivos institucionais nesta lógica” (DESLANDES, 2004, p. 11). Quanto ao fator interativo, transdiciplinar e complexo, busca-se trabalhar pela transdiciplinaridade, sendo a horizontalização das relações de poder entre os diversos saberes, sem descartar a clínica, na o que indica que em saúde se faz sempre necessário não separar, nem dissociar a questão clínica das normas de organização do trabalho e sua gestão (ONOCKO CAMPOS, 2005).

Entendendo que se trata de uma proposta inovadora, pode-se compreender também que, como proposta política que dá sustentação e retorno a tantas ações e sentidos, foi criada em 2003, pela Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, a Política Nacional Humanização (PNH), a qual implica em modos diferentes de operar no campo da saúde. A partir dessa compreensão, é relevante o estudo da humanização como produto da PNH, que orienta uma conduta humanizada por parte dos trabalhadores de saúde na relação trabalhador-trabalhador, trabalhador-trabalho, trabalhador-gestor e trabalhador-usuário.

Buscar conhecer o sentido da humanização numavisão defensora de que os indivíduos e a sociedade concebem e entendem a realidade como uma criação da interação social de indivíduos e grupos, é não apostar numa explicação pronta da realidade, pois “explicar” a realidade social seria menosprezar os processos pelos quais a realidade é construída.

Quanto à operacionalização da humanização enquanto política pública é necessário atentar para que o uso dos dispositivos não se torne impositivo e para que a PNH não se torne uma política de linha dura, implantada de cima para baixo, como determinações políticas dos gestores por meio da co-gestão e fomento de redes.

É importante manter à vista também o princípio da indissociabilidade entre a atenção e a gestão e buscar efetivar na prática esta indissociabilidade por meio da co-gestão e fomento de redes. A busca pela construção do empoderamento dos sujeitos é o maior desafio de qualquer política pública ou realidade social.

 

Notas:

[1] Preservada a grafia original da obra Saúde: a cartografia do trabalho vivo. (MERHY, 2002).

[2] Dicionário da Educação Profissional em Saúde, FIOCRUZ, disponível emhttp://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/hum.html, acessado em 16 de janeiro, às 9h e 58 min.

Mestranda em Ciências da Saúde (UFT). Assistente Social da Diretoria de Doenças Transmissíveis e Não-Transmissíveis da Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins. Professora do curso de Serviço Social do (CEULP/ULBRA).